Os cearenses no oco do mundo: andando por aí com a coragem e a cara
(*) Wilson Ibiapina
São tantos os cearenses que moram fora do estado que, se resolvessem voltar, não caberiam nas cidades.
Bem que tudo podia ter começado como na lenda. A índia Iracema, a virgem dos lábios de mel, criada por José de Alencar, morre de parto. O filho dela, Moacir, foi levado para Portugal pelo pai, Soares Moreno. Quer dizer, o primeiro cearense foi embora. A diáspora cearense nunca mais parou.
Dizem que as secas periódicas são responsáveis pela migração. Olha que a primeira seca a marcar a nossa história ocorreu em 1606. O destino dos migrantes era o sudeste. Preferiam São Paulo, onde a possibilidade de emprego era maior. O porto do Mucuripe facilitou a saída dos que queriam também a aventura de desvendar os outros países. Hoje temos cearenses espalhados pelos quatro cantos do mundo.
O jornalista, Marbo Giannaccini, morou no Japão como correspondente de jornais e revistas do Brasil. Toda vez que fala da coragem e da audácia dos cearenses na luta pela sobrevivência, principalmente lá fora, Marbo costuma contar uma história que ele batiza de Meu Japonês Inesquecível!
“Década de setenta no Japão. Uma reportagem me leva de Tóquio à Kobe, com uma excelente recomendação do Osvaldo Peralva, correspondente da Folha de São Paulo, ao Press Club local, que facilitou meu trabalho e, às duas horas da tarde, já havia enviado minha matéria para São Paulo.
Os jornalistas japoneses, amigos do Peralva, me levaram ao que disseram ser o melhor sushi do Japão.
Não acreditei, pois em Tóquio estão todos grandes chefes japoneses incensados pela mídia e pelos clubes gastronômicos, mas o ver para crer e a fome do dever cumprido me fizeram acompanhá-los.
Ao entrarmos no sushiya, que é como os japoneses chamam as casas especializadas em sushi, fiquei meio decepcionado com o ambiente, que parecia um corredor longo com um balcão contínuo.
A fome e a curiosidade, porém, falaram mais alto e, depois de duas taças de sake, meus novos amigos pediram o famoso sushi.
Servido de modo tradicional, aos pares, tive uma sensação muito estranha quando o primeiro sushi se desfez na boca, aguçando todas as papilas do paladar a apreciar o que concordei em denominar o melhor sushi do Japão.
Embora a gastronomia não fosse meu forte, minha experiência, desde a infância em São Paulo no convívio com nisseis e japoneses, me permitia identificar uma boa ou má comida nipônica.
Repetimos algumas vezes aquela dupla maravilhosa e, no final, perguntei se podia conhecer o sushiasan, o chefe da casa de sushi. Não demora muito, lá vem o japonesinho jogando o corpo de um lado para outro, com o tradicional lenço amarrado na testa e nos cumprimenta com uma reverência.
Depois de apresentado como jornalista brasileiro, perguntei de chofre em japonês:
– Como é seu nome?
Foi aí que conheci meu japonês inesquecível!
– SEVERINO, da Serra do Ibiapaba, mas pode me chamar de Severino da Serra Grande.
Estava ali o ex-cozinheiro de navio que um dia aportou em Kobe e uma linda japonesa retemperou seu querer.”
Um amigo diplomata conta a história de um casal de catarinenses que foi passar férias nos Estados Unidos. O cara era grande, bonitão, mas a mulher dele, uma loira de olhos verdes, seios fartos que um generoso decote deixava quase à mostra, pernas torneadas, era coisa de fechar farmácia de plantão. Alugaram um carro e partiram em um tour pelo oeste americano, só que não acontecia nada. Numa cidadezinha, depois de rodar alguns quilômetros, pararam para jantar. No restaurante perguntaram ao garçom o que havia ali para fazer. O rapaz disse que a única atração era um grupo que fazia um show numa reserva indígena ali perto. Como a apresentação seria dentro de algumas horas, resolveram conferir. Na reserva, as pessoas, sentadas no chão, aguardavam o show dos índios. Não demorou, eles apareceram pintados, penas na cabeça e começaram a dançar, aquela dança de índio gritando e rodando. Um deles começa a olhar insistentemente para a exuberante senhora catarinense. O marido ficou incomodado com aquele índio dançando e olhando para a mulher dele. O show termina e lá vem o índio na direção do casal. O índio se aproxima. Antes que o marido reagisse, o índio falou: – Vocês são brasileiros? Ouvi vocês falando português. Já completamente desarmado pela inesperada intervenção do brasileiro vestido de índio, o marido quis saber que diabos ele tava fazendo ali. – Sou cearense. Trabalhava no restaurante até que um dia fui convidado para fazer parte do show. Meu tipo físico parece com o deles e aqui ganho mais do que lavando prato.
O cinegrafista, Hélio Couto, conheceu um cabeça-chata que tomava conta de camelos num deserto árabe.
O jornalista, Toninho Drummond, me acordou certa noite com um telefonema direto da Suíça para dizer que estava num restaurante sendo atendido por um garçom cearense. Até hoje os cearenses saem pelo mundo para estudar, trabalhar, conhecer outros lugares.
Não são só os pobres, analfabetos, que se aventuram.
Em 1888, chegava a Roma o maior maestro cearense, o homem que criou a canção de câmara brasileira. Alberto Nepomuceno nasceu em Fortaleza no dia 6 de julho de 1864. Filho de músico, aos 8 anos aprendeu a tocar piano. Ficou órfão aos 16 anos, por isso teve que trabalhar numa tipografia e dando aulas de piano. Nepomuceno envolveu-se com o movimento abolicionista em Fortaleza, amigo que era de João Brígido e João Cordeiro. Por causa disso, o governo imperial negou-lhe ajuda para ir estudar na Europa. Teve que fazer uma turnê pelo Nordeste e conseguir o dinheiro para a viagem. Estudou em Roma e em Berlim, onde casou. Fez concertos com músicas de compositores brasileiros em Genebra, Paris e Bruxelas. Morreu no Rio, em outubro de 1920, aos 56 anos. É considerado um dos mais ousados músicos do País. Defendeu o estudo do folclore como meio de conhecer as nossas raízes e criar nossa própria escola musical. Suas canções eram cantadas em português, o que provocou, à época, severas críticas. Alberto Nepomuceno abriu guerra pela nacionalização da música erudita brasileira. Foi um grande incentivador de Heitor Villa-Lobos, que deu continuidade ao seu trabalho pioneiro.
Lembro outros. O pintor Antônio Bandeira saiu do Ceará em 1945 com Inimá de Paula, Raimundo Feitosa e Aldemir Martins para expor no Rio. Terminou seus dias em Paris, onde exibiu seu abstracionismo. Outros vão a Paris apenas para mostrar sua arte, como é o caso do artista plástico e arquiteto Totonho Laprovitera. Ele expôs na capital francesa 25 obras sobre o universo nordestino. Quem vive na Europa fazendo exposições individuais é Bruno Pedrosa. Filho de Lavras das Mangabeiras, mora num castelo no norte da Itália, é um dos maiores pintores abstratos brasileiros. É também um dos mais conhecidos fora do Brasil. Foi registrado, no batismo, como Raimundo Pinheiro Pedrosa. Raimundo em homenagem ao avô que o criou. Bruno é o nome religioso que escolheu, em 1975, ao entrar para a Ordem Beneditina, atraído pela vocação do claustro. É primo do violonista Nonato Luiz, outro que é mais conhecido na França do que no Brasil. Fausto Nilo e Raimundo Fagner também passaram longa temporada em Paris, Fagner gravou disco com Mercedez Soza em Madrid.
O jornalista Rangel Cavalcante lembrou-se do jornalista Chico Moura, amigo dele que mora nos Estados Unidos. O cara parece uma máquina, não para.
Chico Moura, cearense de Fortaleza, iniciou-se como jornalista na imprensa baiana, mas foi nos Estados Unidos que ele virou dono de jornal. No final de 1984, criou, na Flórida, o primeiro jornal em inglês sobre o Brasil, O Brazil Review. Em 1985, criou o Florida Review, o primeiro jornal em português da Flórida e o segundo em todos os Estados Unidos. Em 1990, Chico Moura criou também o Tele Brasil, o primeiro programa (em português) de TV do Estado. Em 1992, vendeu o Florida Review (hoje revista), voltou ao Brasil e criou o jornal Rio Times, com a ideia de resgatar a imagem do Rio de Janeiro no exterior. Em Washington trabalhou na PAHO como dublador (narração de documentários) e na Virgínia criou uma seção em português nas duas mais importantes revistas de Rádio e TV americanas: Radio World e TV Technology. Criou o Brazilian Sun, outro jornal em Miami. Com a venda do Brazilian Sun, foi para Lisboa, onde criou o Luso Brasileiro, o primeiro jornal dedicado aos brasileiros de Portugal. De volta à Miami dirigiu, produziu e apresentou o programa de TV: Chico Moura na Madrugada, na WLRN. Foi tradutor na BVI – para os programas de TV – CBS 48 Hours e 60 Minutes. Escreveu os livros Passagem de Táxi e Tatuagens. Este último rendeu o primeiro lugar no Brazilian Press Award, na categoria Literatura. Recebeu a medalha de Mérito Legislativo da Câmara de Vereadores da cidade de Fortaleza e a chave da cidade de Miami do prefeito Stephen P. Clark. Chico dirigiu o primeiro escritório do jornal O Globo na Flórida, quando bateu o recorde de venda de publicidade entre todos os jornais estrangeiros do país. O Globo foi também o primeiro jornal brasileiro a ter circulação diária nos Estados Unidos. Logo depois, Chico Moura foi o primeiro representante da Revista Ícaro (revista de bordo da Varig) nos Estados Unidos. Ainda hoje ele carrega sempre na cabeça um projeto pronto para ser executado em qualquer lugar do mundo.
Vamos continuar na terra do Tio Sam para falar de Euclides Pinto Martins, mais um que desembarcou por lá. Filho de Camocim, aos quinze anos entrou na Marinha Mercante e conseguiu chegar aos Estados Unidos. Na Filadélfia, fez curso de engenharia mecânica, obteve brevê de piloto, casou-se com uma americana e fez parte do primeiro voo New York-Rio de Janeiro. Virou herói nacional e nome do aeroporto de Fortaleza. Sua história é um livro. Pinto Martins decidiu mudar de profissão. Desembarcou no Rio disposto a explorar petróleo. Suicidou-se no dia 12 de abril de 1924. Monteiro Lobato conta no livro Escândalo do Petróleo e do Ferro que Pinto Martins foi vítima dos lobistas que não queriam ver o país se desenvolver.
Francisco Carlos de Araújo Barbosa é outro cearense apaixonado por avião. O jornalista Rangel Cavalcante, que é primo dele, conta que Barbosa, ainda menino, ia quase todo dia olhar os aviões americanos que ficavam na Base Aérea de Fortaleza, durante a Segunda Guerra Mundial. Fez amizade com os militares americanos e um coronel pediu autorização ao seu Carlos Barbosa para levar o Barbosinha, seu filho, para os Estados Unidos. O pai adotivo deu-lhe formação militar. Foi piloto da Força Aérea Americana na guerra da Coreia. Quando deu baixa, trabalhou no escritório da Companhia Siderúrgica Nacional em Nova Iorque. Depois, montou escritório naquela cidade, onde ganhava dinheiro e trabalhava como verdadeiro embaixador do Ceará e do Brasil. Resolvia todo tipo de problema de quem o procurasse. Morreu pilotando seu próprio avião.
Entre os muitos cearenses que escolheram os Estados Unidos para viver está Joseph de Souza, hoje morando no Colorado. Ele mesmo conta que “rapaz pobre, a exemplo de milhões de outros cearenses, deixou o Ceará em seca para ir à procura das águas da esperança”. “Tangido pelo forte instinto de sobrevivência, viajei em pau de arara como muitos outros. Embarquei num velho navio do Loide para o Rio, onde entrei na Força Aérea Brasileira.” Enviado aos Estados Unidos para um curso de engenharia aeronáutica, o mundo se abriu a seus pés. Lá, mudou de rumo, ingressou no comércio internacional, casou com uma americana. Ele diz que “no futebol da vida, nem todos podem ser pelés e garrinchas”. “Eu me contento em ficar no meu banco, aplaudindo os jogadores. Vivo agora num calmo pé de serra das Montanhas Rochosas.” Escreve Joseph de Souza: “não dei nome a nenhum aeroporto, mas sinto a satisfação de missão cumprida. Posso, feliz, levar meu avião ao hangar. E agradece a Pinto Martins pela inspiração”.
Nem todos, porém, têm a mesma sorte. É o caso da modelo cearense Camila Bezerra, 22 anos, que foi morar e trabalhar na China. Foi encontrada morta na manhã de primeiro de janeiro de 2013. Um mistério que a família, lá do Ceará, tem dificuldades para desvendar. Está lá na internet o site “Cearense pelo mundo”. A intenção é que se identifiquem ali, narrem suas histórias. Ana Cláudia já foi lá e conta que saiu de Fortaleza em 2002 e foi morar no Texas. No Ceará, era professora de inglês. O calor de lá faz Sobral e o Piauí virarem Sibéria. Mas se diz feliz. Como feliz está a cearense Rita Lopes, que mora em Lisboa com o filho Hamilton. Foi pra lá como chef de cozinha da Embaixada do Brasil em Portugal. Aposentou-se e hoje trabalha fazendo banquetes para os ricos. Não tem se queixado. Como também não se queixa o Isaías, cearense de Amontada. Ele casou-se com a portuguesa Luísa e os dois tocam o restaurante Regaço da Rainha, na cidade de Fátima. Entre seus inúmeros clientes ele cita o ex-embaixador do Brasil em Portugal, Paes de Andrade, e Zildinha, sua mulher. Sempre que vão ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima, passam no restaurante do Isaías para saborear os pratos da culinária portuguesa preparados pela Luísa. O jornalista, Macário Batista, é outro que já encontrei no Regaço da Rainha encarando um borrego assado na brasa (aquele cordeirinho, com menos de um ano) e degustando um tinto do douro.
O sociólogo pernambucano, Gilberto Freire, dizia que não se “imaginam mais migrações de cearenses para a Amazônia como as que se sucederam às secas de 1877, de 1888 e de 1900: migrações tão fortes que se justifica a generalização de ter sido o braço cearense que povoou o Amazonas e cearense o movimento de que resultou o Acre”.
O economista, José Márcio dos Santos, diz que, a partir da década de 1980, o Ceará apresenta um saldo migratório negativo. São as mudanças na dinâmica econômica cearense. Os economistas apontam a redução e terceirização do emprego na indústria no Sudeste, os novos focos de crescimento econômico no Nordeste e os programas de transferência de renda do governo federal como os principais fatores que estão prendendo mais o cearense a seu torrão natal. Aquela mão de obra especializada – médicos, engenheiros, economistas –, que São Paulo recebia sem precisar investir um só tostão, agora já pode ficar no estado. Tem também o problema de moradia, de oferta de emprego e violência.
Em 1944, Gilberto Freire, numa conferência no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, intitulada “Precisa-se do Ceará, perguntava: “Melhoradas as condições de vida e aumentadas as oportunidades de êxito, no próprio Ceará, continuará o cearense a emigrar e a difundir seus traços por esses outros estados?” Continuará a haver um cearense nômade, “cigano”, “judeu”?
Acredito que sim, viajar é da formação, é a sina dessa gente. Santo Agostinho dizia que o destino coincide substancialmente com a vontade de Deus. Para o professor mineiro Fausto de Brito, demógrafo da Universidade de Minas, esse movimento de pessoas faz parte da dinâmica das sociedades.
E muitas histórias ainda vão ser contadas como a que Sérgio Porto imortalizou. O cearense em Moscou, desempregado, passando fome, chega a um Circo no momento em que o domador, desesperado, procurava uma solução para o espetáculo. Um dos leões acabara de morrer e o circo estava lotado. Ao ver aquele homem atarracado, cabeça chata, não pensou duas vezes. Contratou o cearense para se passar pelo leão. Colocou uma pele do animal, entrou na jaula e foi levado para o picadeiro. O que ele não sabia é que lá já estava um outro leão. Em pânico, imaginou rapidamente uma saída para intimidar a fera. Levantou as patas dianteiras, soltou um urro tão forte que até ele se espantou. Quando olhou, viu o outro leão, de joelhos, implorando: “Valha-me meu padim padre”.
(*) Wilson Ibiapina (Ibiapina), jornalista