José Jézer de Oliveira (*)
Povo nenhum demonstra maior devoção ao torrão natal que o cearense. Isso nele é apologético. O apego à terra natal é, sem dúvida, o traço mais marcante da personalidade do cearense, muito embora pareça paradoxal por se tratar do povo que mais emigra no Brasil. Há, porém, explicações razoáveis para o temperamento errático ou o caráter de mobilidade dos filhos do Ceará, quando se trata da emigração espontânea. Existe aquela provocada pelo vai-e-vem da natureza, consubstanciado nas secas periódicas. É nessas que o caboclo cearense dá mostra da sua fibra no enfrentamento das agruras e na resistência a intempéries, demonstrando singular bravura e admirável coragem em lidar, até mesmo em outro campo, com a consuetudinária incúria do poder público, aliada histórica da inclemência do sol. Pelejador admirável, não fraqueja diante da desgraça e não lhe ocorre, a não ser nos efêmeros momentos de desânimo, a ideia de fugir, deixando para trás o seu pedaço de chão. Quando o faz, é por motivo de sobrevivência, ao sentir esgotadas as forças necessárias para continuar desafiando o terrível flagelo da seca que cresta o solo e aniquila as criações. Banido pelo sol inclemente, retira-se com o coração sangrando, imaginando o dia em que voltará, sonho de todo retirante. Há, porém, o temor de que sucessivas e devastadoras estiagens, tais quais terríveis catapultas, os arremessem de volta às terras estranhas. Por isso, poucos se aventuram a voltar.
Além da seca, há de considerar-se outro elemento que empurra o cearense para outras plagas: o temperamento nômade herdado dos movediços grupos indígenas que, sem pouso fixo, habitaram o território cearense, entre eles os que migravam conforme a estação do ano. Após o inverno, os habitantes da caatinga buscavam o litoral. Com as chuvas, voltavam ao ponto de partida. Havia, ainda, o grupo daqueles que se fixavam à terra que habitavam e a defendiam de invasores alienígenas ou membros de outras tribos e não afeitos às migrações periódicas provocadas pelas vicissitudes das estações. É de supor que tanto a este quanto ao primeiro grupo o cearense deve a sua formação psicológica. De um, o afeiçoamento ao torrão natal; de outro, o espírito andejo de judeu errante. E de outro, quem sabe, o espírito alegre, irreverente, brincalhão, divertido, obstinado e hospitaleiro, atributos, entre outros, que compõem a identidade do homo cearensis. Distante do chão nativo, sua alma se debulha em nostalgia. Parafraseando Euclydes da Cunha, o cearense é, antes de tudo, um ser nostálgico. Vem a propósito a frase lapidar cunhada pelo jornalista conterrâneo Wilson Ibiapina, a qual exprime bem e fielmente essa singularidade do cearense: “Nós saímos do Ceará, mas o Ceará não sai de nós, não”. Aonde quer que vá o cearense, o Ceará o acompanha aferrolhado no mais íntimo do seu ser.
Para muitos cearenses, o seu mundo se resume no Ceará.
E em abono dessa assertiva, vale transcrever trecho de um episódio narrado pelo escritor maranhense Coelho Netto, em seu livro A Conquista, quando ele e o poeta cearense Paula Ney, ambos sob os codinomes de Anselmo Ribas e Paulo Neiva, vão ao porto do Rio de Janeiro esperar o paquete que trazia retirantes da seca do Ceará. O poeta tentava consolar os conterrâneos:
- Vocês aqui estão muito bem: a terra é boa, a gente é boa, ganha-se muito dinheiro. Depois, é o mesmo Brasil. Vocês não são brasileiros? Um velho “acenou” com o dedo negativamente:
- Nhôr não.
- Como! Então você não é brasileiro, velho?
- Cearense té morrê – respondeu.
- Então o Ceará não é uma província do Brasil, velho?
- Ishi! Ceará é dele só... té morrê.
A Casa do Ceará tem sua origem no sentimento telúrico do cearense. A lembrança do Ceará, o cearense “desgarrado” carrega consigo para onde quer que vá. É uma constante em sua vida que nem o tempo consegue dissipar. A verdade é que o Ceará faz morada no coração e na mente do cearense que não tem morada no Ceará. Embora abstrata, a presença do Ceará na vida do cearense da diáspora se manifesta através de gestos concretos: do encontro, do abraço fraterno, da prosa alegre e descontraída; da incomparável jocosidade, do papo irreverente e divertido; da piada e das estórias engraçadas; e tudo o mais que retrate, com humor e emoção, o modo de ser do Ceará moleque e brincalhão.
A Casa do Ceará nasceu com o objetivo de suprir essas carências afetivas, aglutinando em torno de si os cearenses saudosos dispersos nos ermos do Planalto de Goiás. Esse é o propósito de seu idealizador, o deputado cearense Chrysantho Moreira da Rocha, e concretizado nos primórdios da nova capital.
Quando deputado federal, cumprindo mandato ainda no Palácio Tiradentes, na antiga capital da República, Chrysantho, parlamentares coestaduanos, além de cidadãos cearenses radicados no Rio de Janeiro, costumavam frequentar a Casa do Ceará, fundada e presidida pelo médico Deoclécio Dantas, filho de Missão Velha. Sua sede ocupava salas no 13º andar do prédio nº 12 da Avenida Nilo Peçanha, e, ao que se sabe, foi a primeira instituição do gênero instalada no País. Com a transferência da capital para o Planalto Central, Chrysantho, como mentor intelectual, trouxe na sua bagagem a ideia, já em adiantado estado de gestação, de plantar no infértil solo do cerrado a semente de uma instituição que não só correspondesse nos seus objetivos à sensibilidade telúrica do cearense, mas que servisse de referência àqueles bravos filhos da terra alencarina que, aos milhares, desbravaram o chão do Planalto de Goiás, ajudando no erguimento de uma cidade monumento, orgulho não só dos que participaram de sua construção, mas de todo o povo brasileiro. O objetivo: edificar uma casa em cuja fachada tremulasse ao sol e à brisa seca do cerrado, e à vista de todos, a bandeira do Ceará, anunciadora da presença da pátria de Iracema em território goiano. Teria ela a mesma finalidade da congênere carioca, agregar em torno de si os cabeças-chatas dispersos no novo Distrito Federal.
Devidamente esboçada, a ideia foi levada aos colegas da bancada cearense no Congresso Nacional, unânimes em abraçá-la. A alguns provocou entusiasmo tal que se dispuseram a ajudar Chrysantho na sua concretização, podendo-se destacar três deles: Álvaro Lins Cavalcante, Ozires Pontes e Ernesto Gurgel Valente. O trio auxiliou Chrysantho na montagem final do projeto de criação da futura Casa do Ceará, para o que foram convocados cearenses de outras áreas de atuação, como empresários e jornalistas residentes em Brasília. E assim, na noite de 15 de outubro de 1963, uma sexta-feira, nasceu a Casa do Ceará em Brasília, em reunião convocada pelo seu idealizador em seu apartamento, na SQS 105. Assinaram a ata vinte e oito, que se supõe tenham estado presentes na reunião. Desses, dezenove eram parlamentares, o que significa dizer que praticamente a Casa nasceu no seio da bancada cearense no Congresso. Além de Chrysantho, alçado à condição de presidente, também compuseram a 1ª Diretoria o deputado Álvaro Lins, como 1º secretário, e os pioneiros Luiz Tarcísio do Vale, 2º secretário; Carlos Alberto Pontes, 1º tesoureiro; e Edilson Nogueira Mota, 2º tesoureiro.
A eles se juntou o deputado Ernesto Gurgel Valente, formando o grupo de trabalho encarregado da montagem final do arcabouço institucional da Casa, traçando, até mesmo, as diretrizes para o seu funcionamento. A preocupação primeira era com a instalação física da instituição, para o que se faria necessário criar um corpo de associados, intitulados Sócios Colaboradores, os quais, voluntariamente, participariam da manutenção da novel instituição, inclusive do aluguel do imóvel onde seria instalada. A futura localização se deu em prédio comercial, situado na SQS 212, lojas 19, 20 e 21, onde a Casa funcionou durante algum tempo até a aquisição dos terrenos onde se instalou em definitivo na SQN 910, ocupando, atualmente, um terreno de 30 mil metros quadrados, dispondo assim de espaço necessário para o atendimento dos seus propósitos nas áreas social, cultural e assistencial.
Nascida no seio da representação cearense no Congresso Nacional, a Casa do Ceará transformou-se em ponto de encontro dos políticos cabeças-chatas, sempre presentes em todos os eventos promovidos pela instituição, quer os culturais, quer os sociais, inserindo-se nestes últimos os almoços mensais, ao ar livre, geralmente no último sábado do mês, cujo objetivo era reunir, num gesto de confraternização, os parlamentares e os membros da comunidade cearense da capital da República.
Sempre na data comemorativa do aniversário da Casa, a diretoria promovia um almoço ou jantar, reunindo o corpo de associados e os parlamentares, estes como convidados especiais. Afora isso, era comum a presença de deputados e senadores, geralmente acompanhados das respectivas esposas, como Virgílio Távora, Jorge Furtado Leite, José Flávio Costa Lima, Humberto Bezerra, Wilson Roriz, Flávio Marcílio, Martins Rodrigues, Paes de Andrade, Januário Feitosa, Paulo Lustosa, Esmerino Arruda, Cesário Barreto, Aécio de Borba, Lúcio Alcântara, Ubiratan Aguiar e os senadores Wilson Gonçalves, César Cals, Mauro Benevides, José Lins Albuquerque, Cid Sabóia e Waldemar Alcântara. No período em que governaram o estado, os que mais prestigiaram a Casa nos seus eventos foram Virgílio Távora, Adauto Bezerra, Lúcio Alcântara e César Cals. Assinale-se que Eloísa Távora, esposa do então senador Virgílio, e Beatriz Alcântara, mulher do senador Lúcio Alcântara, integraram o corpo de dirigentes da instituição, a primeira como diretora da Ala Feminina, e a segunda, como diretora do Departamento de Cultura. Contam-se ainda como assíduos colaboradores os jornalistas Ari Cunha; Paulo Cabral de Araújo; Mário Garófalo; Wilson Ibiapina; os sócios fundadores, Francisco Nogueira Saraiva e Esaú de Carvalho; José Hélder de Souza; José Colombo de Sousa Filho; Luciano Barreira; Francisco Inácio Almeida e José Adirson de Vasconcelos.
Durante seus mandatos à frente da instituição, em três períodos, de 1963 a 1977, Chrysantho adotou salutar política de entrosamento dos políticos cearenses com a instituição, política esta mantida por Álvaro Lins, seu sucessor, que, por sua vez, passou a conferir o título de Sócio Honorário aos representantes cearenses, independentemente do grau de relacionamento de cada um com a instituição. Esse simpático gesto continha um simbolismo particular, que se traduzia na maneira de a Casa do Ceará, e, por meio dela, possibilitar à comunidade cearense da capital da República recepcionar os conterrâneos que aqui desembarcavam pela primeira vez para cumprimento de mandato parlamentar. Sucessora de Álvaro Lins, Maria Calmon Porto – Meire – manteve esse nobre gesto durante o longo período em que esteve no comando da instituição. No último ano de seu mandato, deu por encerrado o capítulo de outorga do título, quando os agraciados, sem qualquer justificativa, deixaram de comparecer à cerimônia de entrega da comenda. Na gestão seguinte à de Meire Porto, instituiu-se o título de Sócio Benemérito, a ser outorgado aos cearenses que, efetiva e reconhecidamente, houvessem prestado relevantes serviços à instituição. Nesse período, oito foram os cearenses contemplados com a outorga do título.
Parlamentares também tiveram participação direta nos primeiros eventos de natureza cultural promovidos pela Casa do Ceará. O primeiro deles se deu na noite de 22 de junho de 1967, na sua sede na SQS 212, com o lançamento tríplice dos livros O Jumento, nosso irmão; 100 Cortes Sem Recortes e O Verbo Amar e Suas Complicações, todos de autoria do padre Antônio Vieira, cearense de Várzea Alegre e que à época cumpria mandato de deputado federal. Na ocasião, falando aos parlamentares e a membros da colônia cearense presentes, o padre fez blague ao referir-se à figura gorda e bonachona de Chrysantho, presidente da Casa e seu colega no Parlamento, ali presente, comparando-a a uma concha marítima que, levada ao ouvido, transmite o marulhar das águas do mar. “Assim é Chrysanto, disse ele. Encosta-se o ouvido ao seu peito, ouve-se o palpitar do coração do Ceará.”
Evento similar foi promovido pela Casa do Ceará, em 1993, na gestão de Meire Porto, o qual resgatou do esquecimento a que jazia há 54 anos o livro Cabeças-Chatas, do escritor e folclorista cearense Leonardo Mota, concluído em 1939, vindo à lume somente no ano de 1993, anos após a morte do autor, por iniciativa da Casa do Ceará, que o editou com a colaboração do senador Cid Sabóia de Carvalho.
Ainda no plano da cultura, outro importante acontecimento se deu na Casa na noite de 15 de setembro de 1999, quando o professor cearense, ex-deputado federal e senador José Lins Albuquerque, lançou o livro de sua lavra poética Judas, O Último Enviado, que traz apresentação assinada pelo senador José Sarney, da Academia Brasileira de Letras e sócio honorário da Casa do Ceará. Além de contar com a presença de parlamentares e representantes da comunidade cearense, o evento foi prestigiado também com a presença do governador do Ceará, Lúcio Alcântara, que veio diretamente de Fortaleza para fazer, na ocasião, a apresentação oral do livro.
Quando governador do estado, Lúcio Alcântara foi quem mais prestigiou, com sua presença, os eventos da Casa do Ceará. Na ocasião de festa comemorativa de aniversário da Casa, a que também estiveram presentes os deputados federais Raimundo Gomes de Matos e José Arnon Bezerra e o senador Reginaldo Duarte, foi-lhe prestada homenagem com a entrega pela primeira vez do título de presidente de Honra da instituição, cabendo ao jornalista Paulo Cabral a saudação em nome da comunidade cearense e do corpo de associados. A cerimônia de inauguração das novas instalações do Centro de Cultura da Casa também foi prestigiada com a sua presença. O governador, Cid Gomes, também marcou presença quando da transmissão do cargo de presidente ao jornalista Fernando César Mesquita.
Efetivamente, a Casa do Ceará teve momentos históricos, quando podia contar em suas reuniões festivas, incluindo os almoços de confraternização, com a presença maciça do seu quadro de associados que abrigava considerável número, chegando a um total de 677, entre Honorários (190) e Colaboradores (487). O evento que mais destacou a Casa foi, sem dúvida, “Noite Cearense Sob o Luar de Brasília”, realizado anualmente no mês de agosto, tendo chegado à sua 16ª edição, com a apresentação do cantor e compositor cearense Evaldo Gouveia. Realizada ao ar livre, atraía milhares de espectadores, havendo, até mesmo, uma “tribuna de honra” destinada aos parlamentares, autoridades e membros da diretoria.
A presença assídua dos parlamentares cearenses na Casa, com honrosas exceções, como a do ex-senador e deputado federal Mauro Benevides, grande benfeitor da instituição; de Valmir Campelo e Ubiratan Aguiar, ex-deputados federais; e, posteriormente, dos ministros do Tribunal de Contas da União, os ex-senadores Lúcio Alcântara e José Lins, começou a minguar a partir do instante em que Câmara e Senado, à custa do erário, franquearam a seus membros passagens aéreas semanais de ida e volta aos estados de origem. A medida repercutiu na vida da Casa do Ceará, que deixou de contar com a participação dos ilustres representantes cearenses em suas diversas promoções, inclusive os almoços de fim de mês que perduraram até o final da gestão dinâmica de Meire Porto.
(*) José Jézer de Oliveira (Crato), jornalista e ex-presidente da Casa do Ceará em Brasília.